A ética coletivista tem uma longa história, e serviu de base para vários sistemas ideológicos e de organização social no decorrer da história. Suas origens podem ser traçadas até a antigüidade. É uma visão muito mais antiga (e influente) do que a individualista. Como qualquer conjunto de idéias, a ética coletivista passou por várias mudanças e adaptações ao longo da história. Mas seus elementos fundamentais permanecem, mesmo que as feições que assumem, os meios para sua implementação e as justificativas morais e filosóficas tenham mudado.
Mas sem maiores delongas: o que é a ética coletivista?
A ética coletivista parte de uma premissa fundamental diametricamente oposta à do individualismo: a de que o coletivo (ou seja, o conjunto de pessoas de uma determinada comunidade ou espaço sócio-cultural) é o elemento fundamental da organização social. Os direitos de cada indivíduo são definidos pelo coletivo, assim como suas responsabilidades. O "bem comum" é um conceito importantíssimo no pensamento coletivista: aquilo que beneficia o coletivo deve sempre ter precedência sobre os interesses individuais. Ações tomadas pelos indivíduos são julgadas como corretas ou não à luz do seu impacto sobre o coletivo e sua contribuição (ou não) para o "bem comum".
Na aparência, a ética coletivista é bem atraente. Quem não gostaria de viver em um mundo onde o egoísmo tivesse sido abolido e o "bem comum" fosse o objetivo mais importante? Mas infelizmente, o pensamento coletivista está recheado de inconsistências, paradoxos e premissas falaciosas que não apenas tornam o atingimento dos seus elevados ideais impossível, como fatalmente leva à criação de uma sociedade que opera em parâmetros completamente opostos a eles.
Começemos pela questão da submissão do indivíduo ao coletivo. Embora aparentemente positivo, esse princípio esconde uma falácia: ele implicitamente diz que o indivíduo, enquanto ente separado, não possui direitos ou deveres específicos; eles dependem daquilo que o coletivo considerar adequado ou não, de acordo com o "interesse comum". Já neste ponto surge um problema: as pessoas não têm, em princípio, direitos ou deveres fundamentais. Sem entrar na questão (polêmica) do direito natural (que não vêm ao caso agora, mas pode ser material para uma outra discussão), a ética individualista aceita que certos direitos são absolutos e inalienáveis: os direitos à vida e à liberdade, por exemplo. Isso não ocorre com o coletivismo: esses direitos, se for considerado necessário, em nome do "bem comum", podem ser restringidos, modificados, ou mesmo abolidos.
Nem bem nos defrontamos com a questão da insegurança dos direitos, já esbarramos em outro problema: o conceito do "bem comum". Embora possamos certamente definir situações ou ações específicas como contrárias ou favoráveis ao "bem comum" com facilidade (entendido aqui como aquilo que beneficia o máximo possível de pessoas com o mínimo possível de custo ou esforço), tal identificação torna-se gradualmente mais complicada à medida que aumentamos o número de elementos da vida social que passam a ser julgados por esse critério. Pior, à medida que ampliamos o uso desse critério para áreas cada vez maiores da sociedade, maiores são as chances de que teremos políticas que, para beneficiar muitos, necessariamente ferirão os direitos de alguns. Em uma sequência lógica, quando todos os aspectos da vida social passam a ser regulamentados pelo conceito do "bem comum", este torna-se vazio de sentido, pois tantos grupos e indivíduos terão perdido alguma coisa no processo que, para eles, o prejuízo é maior do que o eventual benefício. O "bem comum" tornou-se o "mal comum".
Ainda no tema do "bem comum", o crescimento das parcelas da população que inevitávelmente considerarão pelo menos algumas das políticas adotadas como nocivas indica que seria impossível construir um consenso sobre o que é "bem comum" em todos os casos. Na ausência de consenso, resta um único caminho: a coerção. A parcela que considerar que os seus interesses representam o bem comum tenderá a impor políticas e leis favoráveis a eles, seja através de mecanismos de representação majoritária que firam os direitos dos discordantes (conhecida como "ditadura da maioria", que nada tem a ver com o conceito de democracia), ou pura e simples tirania (ou seja, uma ditadura que define o que é ou não correto de acordo com os interesses dos detentores do poder). Em ambos os casos, cria-se um modelo onde o "bem comum" é a primeira fatalidade.
O "bem comum" é perfeitamente conciliável com a ética individualista. A diferenca é que, com ela, a definição de "bem comum" é necessariamente limitada; apenas aquilo sobre o qual todos podem concordar livremente pode ser tratado como "bem comum". A partir daí, cada um deve buscar o seu caminho pessoal para a felicidade. Neste aspecto a obra de Max Weber, demonstrando como a ética protestante (que é fortemente calcada no pensamento individualista, mas também valoriza de forma expressiva a caridade, a tolerância e a boa vontade) levou ao sucesso do capitalismo nos países Anglo-saxões. A ética individualista não exclui, de forma alguma, a solidariedade; apenas a coloca como algo de foro íntimo. Ninguém pode ser forçado a ser solidário.
Saindo da esfera político-social para a individual, a ética coletivista também apresenta desafios sensíveis. O maior deles é o que costuma ser chamado de relativismo moral: o fato de que uma dada ação é julgada como "certa" ou "errada" não com base em princípios éticos fixos e permanentes, mas no que atende ou não aos interesses do coletivo. Sem abordar novamente os problemas com a definição de "bem comum", a ênfase no coletivo para o julgamento do acerto ou não cria espaço para que, dadas as circunstâncias adequadas, qualquer ação pode ser justificada e considerada correta. Por exemplo: se em uma dada circunstância o assassinato de um indivíduo é visto como benéfico para o coletivo, este deixa de ser um crime, e pode até mesmo ser considerado um ato heróico. Contrasta com isso a visão individualista: um assassinato é um crime, ponto. O criminoso pode ter sua punição abrandada ou intensificada de acordo com a situação, claro; mas isso não significa de forma alguma a transformação do erro em acerto. E em situações onde existe dúvida, a ética individualista oferece uma hierarquia clara de prioridades de direitos: por exemplo, a vida tem precedência sobre a liberdade, que tem precedência sobre a propriedade. Em caso de conflito, o mais importante impera. É por isso que temos, por exemplo, a figura da legítima defesa: a vida é o direito mais importante, e a nossa própria vida é mais importante do que a de quem deseja nos matar. No individualismo, as regras sobre o que é certo ou errado estão previamente definidas e são de conhecimento de todos: no coletivismo, elas dependem das circunstâncias.
A ênfase no coletivo também gera outro elemento pernicioso para as relações sociais: a tendência a transferir para a comunidade a responsabilidade pelos atos do indivíduo. Um exemplo claro é o tratamento que é dado ao crime por certos grupos de inspiração coletivista: antes de representar uma violência de um indivíduo para com outro, a ação criminosa é vista como reflexo de uma situação social. Isso equivale a tirar do indivíduo a responsabilidade pelos seus atos; eles passam a ser vistos como determinados fundamentalmente pela situação sócio-econômica, ou de etnia, ou qualquer outro elemento "coletivizante" que se quiser usar. Não que as condições sócio-culturais específicas não sejam importantes para a compreensão das raízes do comportamento de um dado indivíduo; mas não podem nunca ser tratadas como explicação única ou total do fenômeno do crime. A sublimação da responsabilidade individual gera impunidade e estimula o comportamento criminoso.
E têm mais: se por um lado, a responsabilização do coletivo significa absolver indivíduos de suas responsabilidades, por outro, pode levar à condenação de grupos inteiros pela ação de indivíduos específicos. A intolerância religiosa, étnica ou política têm suas raízes na transferência da responsabilidade da esfera individual para a coletiva. Tanto as vítimas quanto os algozes do genocídio e da perseguição deixam de ser indivíduos dotados de razão e capacidade de julgamento racional e ético para serem apenas expressão dos coletivos a que pertencem; a monstruosidade é relativizada, banalizada, pois no fim ninguém é responsável: "todos" são. Mesmo os que nada sabiam, ou que não tinham meios para opor-se. É a igualdade na generalização.
E aí talvez resida o verdadeiro mal do pensamento coletivista: a generalização, e consequente destruição, do valor de cada indivíduo como ser humano, único e distinto de todos os demais. Passamos a ser apenas peças de uma máquina: o "coletivo". Nossas vidas passam a ser definidas por ele. Não temos mais valor intrínseco enquanto indivíduos: nosso valor é apenas aquilo que o coletivo considerar que é. E quem define o que pensa o coletivo? Seus "líderes", claro: a vanguarda pensante que diz a todos os demais o que é certo ou errado.
Não é à toa que na base de todos os regimes totalitários do século 20 podemos encontrar o pensamento coletivista: Fascismo, Nazismo, Socialismo. E recuando no tempo, encontramos encarnações do coletivismo no Absolutismo europeu, nos regimes despóticos da China e do Japão feudais e imperiais, e em todas as tiranias e ditaduras de todos os tempos. Basta substituir o "coletivo" pelo Estado, pelo Rei, ou pelo Imperador, e temos exatamente a mesma lógica e submissão do indivíduo.
Fonte: Blog Livre Pensamento
Leia também: "Ética Individualista".
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