Leia esta coluna como um desabafo. Após quase três décadas de jornalismo científico, nas quais esse campo deu um salto notável, é desanimador encontrar a imprensa ainda vulnerável ao assédio de grupos marginais que, na falta de melhor nome, caberia caracterizar como "ciência paranormal".
Não se trata bem da pseudociência tradicional, daquele tipo fraudulento que vende barbatana de tubarão ou cogumelo solar como a última palavra da pesquisa. Refiro-me aos cruzados que se empenham no assalto à ciência natural estabelecida. À frente marcham os céticos do aquecimento global -mais bem-sucedidos em suas incursões midiáticas- e da evolução por seleção natural -menos ouvidos por jornalistas, mas com maior inserção social por meio de igrejas e seitas. Não admitem fazê-lo por razões ideológicas, morais ou dogmáticas, como a Igreja Católica nas suas campanhas contra a camisinha e as células-tronco embrionárias, mas usam armas similares.
Sua tática tem por alvo a noção de "ciência estabelecida".
O nome pode ser ruim, mas designa uma coisa boa: o estado da arte do conhecimento, conjunto variável de explicações sobre o mundo natural apoiado em observações e aceito pela comunidade mundial de pesquisadores. O consenso muda o tempo todo, mas mantém um núcleo que Thomas Kuhn chamou de "ciência normal". Esta sobrevive até que observações discordantes se acumulem a ponto de desencadear a famosa "mudança de paradigma". As teorias são abandonadas ou radicalmente transformadas, dando origem a outra ciência normal. Os cruzados do clima e do criacionismo se tomam por cavaleiros do novo paradigma, em investida contra o moinho climático e darwiniano. Promovem qualquer artigo obscuro a resultado discordante que vai derrubar a ciência normal. Alegam censura e repressão, quando sua "ciência" não é reconhecida (como a "teoria" do design inteligente).
Outra tática empregada é apresentar como prova de refutação as lacunas e incertezas inerentes ao conhecimento científico. Os evolucionistas não têm uma explicação completa da origem bioquímica da vida, portanto estão errados. Modelos climáticos não passam de simulações, portanto seus resultados são inservíveis.
O mantra dos céticos do aquecimento é acusar o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) de ignorar a variabilidade natural do clima. Segundo os cavaleiros do paradigma, o painel da ONU menospreza influências como as variações na radiação solar resultantes dos ciclos de atividade da estrela, ou como vulcões e raios cósmicos. Não é verdade. Os aproximadamente 500 autores e 400 revisores do capítulo sobre a base de ciência física do "Quarto Relatório de Avaliação" do IPCC (AR-4, 2007) consideraram a literatura sobre aqueles fatores naturais, sim. Concluíram que eles contribuem com cerca de um décimo do potencial de aquecimento das atividades humanas, como a emissão de gás carbônico pela queima de combustíveis fósseis e florestas.
É uma questão que admite abordagem empírica. Para isso, cientistas que discordam têm de produzir novos dados e submetê-los à avaliação de seus pares, não de jornalistas. O IPCC pode não ser santo, mas é honesto e transparente. Já os céticos e criacionistas não param de pé sem uma conspiração repressora de governos, imprensa leiga e periódicos científicos para calar os que bebem a Verdade de fontes a que só eles, os escolhidos, têm acesso.
Marcelo Leite
Fonte: Folha de São Paulo, 12 de abril de 2009.
NOTA Marco Antonio Dourado: Prezado Marcelo Leite, ao ler seu artigo "Ciência Paranormal" (Folha de S. Paulo, 12/04/09) afirmando que "os céticos e criacionistas não param de pé sem uma conspiração repressora de governos, imprensa leiga e periódicos científicos para calar os que bebem a Verdade de fontes a que só eles, os escolhidos, têm acesso", lembrei-me de uma fala sua, em conferência na USP - se não me engano, em 2006 -, quando, ao ser questionado sobre os avanços do design inteligente e o criacionismo no Brasil, você foi tão ligeiro e econômico quanto o personagem bíblico Onã: "Não damos espaço."
Por falar em Onã (Gn 38:8-10), não resisti ao trocadilho, após ler o seu artigo: não adianta chorar sobre o "leite" derramado... Mas uma frase do seu texto entra para a história do jornalismo e da ciência brasileiros: "O IPCC pode não ser santo, mas é honesto e transparente." O que significa exatamente "não ser santo", Marcelo? Ironia ou um lapso freudiano?
Causou-me pasmo e tristeza que você viesse a parafrasear um dos slogans mais "honestos e transparentes" já vistos em uma campanha eleitoral: "Maluf não é santo, mas faz."
Curioso que, atualmente e a exemplo do IPCC, outra confraria de gigantes vindique para si os encômios de "honestidade e transparência": o Senado Federal, que, de igual modo, também admite "não ser santo".
Apesar de fustigados pelos sabujos da mídia, Marcelo, os criacionistas buscamos, ao contrário do IPCC, atender a um dos requisitos do nosso injustiçado Criador: "Sede santos como Eu também sou santo" (1Pe 1:16; Lv 11:44; 19:2; 20:7 Am 3:3).
É tão somente por tal requisito que a nossa "honestidade e transparência" produzem conclusões por vezes diversas das conclusões decorrentes da "honestidade e transparência" do IPCC (e, por que não?, do Senado e de Paulo Maluf).
Nossa "honestidade e transparência" podem até não rezar por certos... cânones da Nomenklatura Científica, mas a "fonte" da nossa "Verdade" não é exclusiva a "escolhidos". Nós a partilhamos de bom grado com todos que dela queiram beber.
Essa Fonte - que não é só nossa - é Santa. E é também Honesta e Transparente. Dela beberam Galileu, Kepler, Newton, Pascal e Pasteur, entre muitos.
E, creia-me, ela pode aumentar significativamente a nossa expectativa de vida.
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